O golpe de Estado de 1964 e seus reflexos em Camaçari (Parte II)

A origem dos movimentos sociais em Camaçari A Igreja Católica exerceu um importante papel nos movimentos populares através da Teologia da Libertação e da aproximação da igreja a militantes do Partido Comunista que, junto aos padres progressistas, organizavam as ações populares e assim foram criadas as primeiras associações de moradores, clubes de mães e sindicatos em Camaçari.

Em 1979 o general, João Baptista Figueiredo, toma posse como presidente da República e assume a intenção de reconduzir o país à democracia, mas essa condução foi de forma lenta e gradual com os militares dirigindo a transição de modo autoritário. Ele extinguiu o bipartidarismo e a Aliança Renovadora Nacional (ARENA), partido político fundado pelos militares com o propósito de servir de base de sustentação política para a ditadura, e foi sucedido pelo Partido Democrático Social (PDS) e o Movimento Democrático Brasileiro (MDB) foi substituído pelo Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB).

Nesse momento de transição em 1979 chega a Camaçari, por orientação do Partido Comunista, o farmacêutico Luiz Carlos Caetano que, inicialmente, atuou como professor e se tornou presidente da Associação de Moradores da Gleba B. Mas depois que a população que não tinha moradia iniciou as invasões às casas populares que estavam prontas e o governo municipal e estadual não as entregavam, ele passou a liderar o movimento de invasão dos conjuntos habitacionais da Habitação e Urbanização do Estado da Bahia S/A (URBIS) e do (INOCOOP). As condições de moradia dessa parcela da população eram a pior possível e necessitava urgentemente de uma solução. Após as invasões houve muita resistência por parte do estado e do município, mas, ao final de muitas lutas, os trabalhadores foram cadastrados e passaram a residir nas unidades habitacionais.

Desde o período em que era estudante do curso de farmácia e bioquímica na Universidade Federal da Bahia (UFBA), em Salvador, os passos de Luiz Carlos Caetano cognominado em um relatório emitido pelos militares de “cabeça de fogo”, eram monitorados pelas Forças Armadas. Segundo o mesmo relatório, ele era participante ativo e assíduo do Movimento Estudantil Nacional, e sempre que tinha oportunidade pregava idéias marxista-leninistas com a finalidade de conscientizar os demais colegas dos propósitos desses ideais, persuadindo-os a se tornarem participantes dessa movimentação de base que tinha como meta uma aliança nacional para a derrubada da ditadura imperialista.

Os agentes da ditadura ressaltavam que Luiz Carlos Caetano fez parte da comissão de membros do Partido Comunista responsável por recepcionar, no Aeroporto Internacional Dois de Julho em Salvador, Diógenes Alves Câmara Arruda, um dos fundadores do PC do B no Brasil cuja sigla antes era PCB, e José Renato Rabelo, um dos diretores da Ação Popular no Brasil e vice-presidente da União Nacional dos Estudantes (UNE).

Os camaradas, Diógenes Arruda, José Rabelo, Luiz Carlos Caetano e Luiz Carlos Prestes dentre outros militantes de esquerda, participaram do II Congresso Internacional pela Anistia de caráter amplo e irrestrito que ocorreu entre os dias 15 e 18 de novembro de 1979 no Centro de Estudos e Ação Social (CEAS), em Salvador. Uma semana após, no dia 25 de novembro de 1979, Diógenes Arruda morreu em São Paulo, aos 65 anos.

Militância e Resistência  Seguindo orientações do Partido Comunista, chega em Camaçari em 1978, para atuar no processo político, a professora recém-formada em letras pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), natural de Rui Barbosa, Bahia, Luiza Costa Maia. Desde 1976, quando ainda era estudante universitária em Salvador, passou a ser monitorada pelos militares. Esse monitoramento se deu a partir do momento em que foi eleita segunda secretária do Diretório Central dos Estudantes do DCE da UFBA. Ela, ao chegar em Camaçari, trabalhou na Companhia Bahiana de Fibras (COBAFI), mas, em seguida, foi demitida por conta da sua atuação política, tornando-se depois a responsável pelo Movimento do Custo de Vida (MCV) que ficou conhecido como Movimento Contra a Carestia cuja missão era protestar contra as políticas econômicas e sociais da ditadura.

O movimento de formação de núcleos de esquerda na cidade do polo trouxe para Camaçari, junto com Luiza Maia em 1978, o técnico em contabilidade natural de Caetité, Bahia, José Carlos Alves Silveira, à época seu marido, que ficou conhecido como Carlos Silveira. Ele atuou em Camaçari como professor de contabilidade, mas logo foi demitido da prefeitura por conta do seu posicionamento político e ideológico, sendo dissidente do PC do B foi um dos fundadores do Partido dos Trabalhadores em Camaçari. Na sequência estabeleceram-se na cidade muitos outros militantes de esquerda, como Ivo Borges dos Santos, Olival Freire Júnior, Sonivaldo Soares da Costa, José Ulisses Parente e Clemente José Dantas, tendo este trabalhado na capital como balconista e motorista e, ao se estabelecer em Camaçari, tornou-se taxista e, em seguida, presidente da Associação de Taxistas de Camaçari e do Centro Cívico da Escola Polivalente José de Freitas Mascarenhas. Alguns jovens nativos e outros residentes na cidade se engajaram nos movimentos sociais, como: Ivanildo Antônio, Cristovão Colombo, Ubirajara Coroa, Adelson Carvalho, Margarida Maria Alves, Sérgio Bastos Paiva, Suzanete de Assis e David Félix. Não podemos deixar de destacar o aporte de Hilário de Jesus Leal, Francisco Santana e Izanor Pereira neste processo.

Nas comemorações dos 223 anos de emancipação política de Camaçari, em 28 de setembro de 1981, após ter panfletado na Praça Desembargador Montenegro, Carlos Silveira foi abordado por militares à paisana que o submeteu a uma seção de espaçamento e depois o entregou aos policiais militares que o conduziu para a delegacia onde foi interrogado pela autoridade policial. Em seu depoimento ele declarou que era dirigente do Partido dos Trabalhadores em Camaçari, que havia reunido um grupo de 150 pessoas para organizar o partido e que, no dia 12 de agosto de 1981, havia registrado a convenção do partido no cartório de notas de tabelião do município de Mata de São João.

Carlos Silveira acrescentou que os panfletos haviam sido distribuídos na praça, durante a manhã, e que essa era uma ação conjunta dos partidos de oposição, como o Partido dos Trabalhadores (PT), o Partido Popular (PP) e o Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB), em protesto contra a situação política, social e econômica do município. Ele ainda solicitou que fosse registrado as agressões físicas que havia sofrido por parte dos militares que o abordou. Os folhetos subversivos de Carlos Silveira eram titulados de “A farsa e a festa” e “1º de outubro dia nacional de luta”.

O padre italiano, Paulo Maria Tounucci, foi designado pelo cardeal, D. Avelar Brandão Vilela, para assumir a paróquia de Camaçari. Esse padre fazia parte do clero progressista e foi transferido com a finalidade de formar e desenvolver uma pastoral operária. O clero progressista realizou, em Camaçari, o I Congresso Nacional de Jovens Trabalhadores e promoveu diversos encontros e debates entre a sociedade e militantes dos partidos de esquerda.

Ainda nos anos de 1980 foi fundado, por Carlos Silveira do Partido dos Trabalhadores (PT) e Eduardo Francisco da Nóbrega do Movimento Operário (MO), o Centro de Estudos, Ação Sindical e Popular de Camaçari (CEASP) com o objetivo de colaborar com as ações do movimento operário. Essa entidade funcionava na Igreja de São Thomaz de Cantuária e suas ações eram coordenadas pelo padre italiano Gian Franco Confalonieri e os sacerdotes alemães Manfredo, Geraldo e Alberto Keller. Havia também o jornal Tribuna da luta operária (TLO) que funcionava na Rua das Almas no Bairro dos 46. Em 1982 houve, nessa entidade, uma reunião de militantes de esquerda com a presença de João Amazonas de Souza Pedroso que, à época, era secretário geral do PC do B e de José Ulisses Parente, responsável e articulador da reunião.

Nesse período havia uma preocupação por parte dos militares que houvesse um surto migratório para Camaçari de trabalhadores e operários do Rio Grande do Norte, Alagoas e Sergipe porque a remuneração nesses estados era equivalente a 30% dos salários pago em Camaçari. Apesar de o município sediar o segundo polo petroquímico do Brasil, a população de Camaçari continuava subempregada.

Os primeiros anos de atividade do polo petroquímico foi um período bastante conturbado, pois havia núcleos de resistência à ditadura formados por militantes do PC do B em diversos bairros da cidade. Havia comunistas estabelecidos no bairro da Bomba, Lama Preta, Bairro dos 46, Gleba C, Alto da Cruz, nos PHOCs, em Vila de Abrantes e Dias D’Ávila. O PT tinha núcleos nos bairros da Bomba, Natal, Gravatá e PHOC I. Muitos militantes de esquerda sempre puderam contar com o apoio de Nilson Almeida Leite mais conhecido como Mug.

Em 1982 Luiza Costa Maia, Luiz Carlos Caetano e José Clemente Dantas foram eleitos vereadores pelo PMDB, partido satélite que abrigava os opositores da ditadura. O seu quadro de ativistas era composto de membros de sindicatos, associações de bairro, associações profissionais, artistas, estudantes, componentes da ala progressista da Igreja Católica e, principalmente, de militantes de esquerda em sua maioria jovens quadros do Partido Comunista.

Os ventos da mudança  Em 19 de dezembro de 1984 foi promulgado o Decreto-lei nº 2.183/1984 que descaracterizou 74 municípios dos 106 qualificados como área de segurança nacional incluindo Camaçari. Em 15 de maio de 1985 foi publicada a Emenda Constitucional nº 25 permitindo que os municípios descaracterizados como área de segurança nacional pudessem eleger seus prefeitos. Nesse mesmo ano o Partido Comunista passou a apoiar a candidatura de Tancredo Neves para presidente da República.

No cenário local os partidos políticos começaram a se organizar para disputar o comando da Prefeitura Municipal de Camaçari. O prefeito Humberto Ellery com seu cunhado, o ministro da Desburocratização, Paulo de Tarso Lustosa Costa do governo do presidente da República, José Sarney, apoiou o candidato José Eudoro Reis Tude do PDS; Oscar Palmeira Neto, candidato pelo PFL, foi apoiado pelo ministro de Minas e Energia, Aureliano Chaves; Francisco Françu Gomes Assemany, dissidente do PMDB, se candidatou pelo PDT e recebeu o apoio da deputada estadual pelo PMDB, Abigail Feitosa, e do Movimento da Unidade Popular (MUP); Luiz Carlos Caetano candidatou-se pelo PMDB em uma coligação com o PT foi apoiado pelo operário e metalúrgico Roberto Dorea, que era coordenador do grupo Renovação Democrática (RD).

Os movimentos sociais exerceram intensa luta pela retomada da democracia no município de Camaçari. Após 11 anos de mandato do “prefeito biônico” Humberto Henrique Garcia Ellery. Em 15 de novembro de 1985 Camaçari elegeu o farmacêutico e bioquímico Luiz Carlos Caetano (PMDB-PCdoB), um jovem político forjado no movimento estudantil que, juntamente com seus camaradas, migrou para Camaçari na perspectiva de formar um núcleo comunista, combater a ditadura militar e iniciar e fortalecer os movimentos populares. O “cabeça de fogo” venceu seu principal opositor, o capitão da reserva do Exército, José Eudoro Reis Tude, candidato do PDS. Nesse pleito Camaçari foi o único município da Federação a eleger um prefeito comunista. Essa situação fez com que a gestão de Luiz Carlos Caetano não tivesse nenhum tipo de apoio dos entes estadual e federal, além de sua administração ter sofrido uma forte oposição.

Logo após o resultado das eleições de 1985, na expectativa de se organizar para as próximas eleições que ocorreriam em 1988, José Eudoro Reis Tude formou um grupo político denominado Grupo Libertação, que tinha como objetivo fazer oposição frontal à administração de Luiz Carlos Caetano que, segundo o referido grupo, Caetano “quer transformar Camaçari em uma Albânia Tupiniquim”. O Grupo Libertação era formado por 289 pessoas e seus principais líderes foram José Raimundo Mônaco, Deusdete Ribeiro da Silva, pai do ex-vereador Teo Ribeiro, Paulo Roberto Schindler, Amélia Pinheiro, Nilza Pinheiro, Valdir de Castro, Edson Pinheiro, Lúcia Schindler e Moacir Ribeiro.

O período dos 21 anos de ditadura civil e militar foi marcado por extrema violência, desrespeito às garantias constitucionais e intensa repressão sem nenhum direito à defesa ou contestação do regime vigente. O Brasil só veio de fato conquistar a legalidade democrática e a garantia dos direitos com a promulgação da Constituição de 1988. Para que chegássemos a esse estágio houve muita luta e derramamento de sangue. O Brasil não precisa passar por isso novamente. Nas décadas passadas lutamos por anistia para todos aqueles que sofreram as agruras de um estado de exceção, mas de maneira nenhuma podemos anistiar quem atenta contra as instituições e o estado democrático de direito. Ditadura nunca mais.

Confira a primeira parte do artigo

Diego de Jesus Copque diegokopke@gmail.com é professor, historiador, pesquisador da história da Bahia e autor dos livros Do Joanes ao Jacuípe: uma história de muitas querelas, tensões e disputas locais e A presença do Recôncavo Norte da Bahia na consolidação da Independência do Brasil.

Opiniões e conceitos expressos nos artigos são de responsabilidade do autor

By admin